Majoração de ICMS sobre venda de veículos usados não pode ser feita por decreto

Luiz Carlos Junqueira Franco Filho

No Estado de São Paulo, a venda de veículos usados está sujeita à redução da base de cálculo do ICMS, desde que cumpridos os seguintes requisitos:

  • a operação da qual tiver decorrido a entrada do veículo não tenha sido tributada pelo ICMS, que é o caso de veículo adquirido de pessoa física ou de pessoa jurídica que o tinha incorporado ao ativo permanente;
  • a entrada e a saída sejam comprovadas mediante emissão de documento fiscal próprio;
  • as operações sejam regularmente escrituradas.

Este benefício fiscal tem amparo no Convênio ICM 15/81, combinado com o Convênio ICMS 33/93, que autoriza os Estados e o Distrito Federal a reduzirem a base de cálculo de ICMS em até 95%.

Até 31 de janeiro de 2017, o Estado de São Paulo aplicava o percentual máximo de redução autorizados pelo Convênio acima. No entanto, com o advento do Decreto 62.246, de 01/11/2016, a redução de base de cálculo foi ajustada para 90%, passando este novo percentual a valer para as operações praticadas a partir de fevereiro de 2017.

Na prática, o governador do Estado de São Paulo dobrou a carga tributária sobre os veículos usados, ao arrepio da Lei.

Consta em seu preâmbulo que o Decreto 62.246/16 foi editado com base no artigo 84-B da Lei 6.374/89, o qual, por sua vez, possui a seguinte redação:

 

“No interesse da arrecadação tributária, da preservação do emprego, do investimento privado, do desenvolvimento econômico do Estado e competitividade da economia fiscal, bem como para garantia da livre concorrência, o Poder Executivo poderá adotar, cumulativamente, as seguintes medidas:

I – Ações preventivas de fiscalização que visem minimizar a repercussão dos efeitos de atos legais praticados por outras unidades federadas;

II – Incentivos compensatórios pontuais;

III – Outras medidas legislativas infralegais. (sic!)”

 

O dispositivo em questão tem o claro propósito de proteger a economia paulista contra a concorrência desleal decorrente de incentivos fiscais irregulares concedidos por outros Estados, no contexto da chamada “guerra fiscal”, mas jamais pode servir de justificativa para se reduzir um benefício fiscal plenamente válido, eis que autorizado por Convênio. Houve um claro desvio de finalidade da Lei, que se presta à proteção do contribuinte paulista e não aos interesses arrecadatórios do Fisco.

Como se sabe, o sistema tributário brasileiro está embasado no princípio da legalidade, que, salvo em raras exceções definidas no texto constituição1, impede o Poder Executivo de cobrar ou majorar tributos sem previsão legal.

Esta garantia não está restrita às alíquotas dos tributos, mas abrange todos os elementos que influenciam na quantificação da obrigação tributária, inclusive sua base de cálculo. Neste particular, o artigo 97, inciso II, parágrafo primeiro do Código Tributário Nacional (CTN) é muito claro ao submeter à reserva legal a modificação da base de cálculo do tributo, de maneira a torná-lo mais oneroso.

De acordo com o CTN, que tem por finalidade justamente regular as limitações ao poder de tributar, dentre outras atribuições, a redução de um incentivo fiscal representa uma majoração de tributos e, como tal, só pode ser implementada por Lei, jamais por Decreto.

É bem verdade que o Convênio 33/93 autoriza os Estados a concederem redução de base de cálculo de ICMS de até 95% sobre as vendas de veículos usados, de maneira que cada ente federativo pode estipular um percentual de redução inferior ao limite estabelecimento. No entanto, uma vez estipulado este percentual e definida a carga tributária efetiva para as operações em questão, qualquer modificação que acarrete uma majoração do ônus suportado pelo contribuinte dependerá de Lei, não podendo o Convênio suprir essa exigência decorrente da Constituição Federal e do STF.

Em vista dessas breves considerações, entendemos que os comerciantes de veículos usados no Estado de São Paulo dispõem de bons fundamentos para questionar em juízo a majoração de carga tributária levada a efeito pelo Decreto 62.246/16.

1 Pertinentes aos impostos de Importação, Exportação, Produtos Industrializados e sobre Operações Financeiras, que possuem feições nitidamente extrafiscais, de regulação da economia.